Games e gamificação

Os games podem explorar diferentes habilidades, sejam físicas, cognitivas, ou sociais. Entre os exemplos, podemos citar os jogos de corrida e os que têm como objetivo acertar um alvo; os games de aventura, para a resolução de problemas; e os jogos que estimulam a comunicação, expressão de sentimentos e a colaboração entre jogadores, respectivamente. Eles também podem envolver o jogador em experiências que geram conhecimento sobre um tema específico e complexo. Essas possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento de habilidades são muito interessantes para uso na educação. 

Os games educacionais, também conhecidos como “jogos sérios” (Serious Games), exploram desafios com objetivos de aprendizagem sobre um tema. 

Veja, por exemplo, o Jogo Maruaga, desenvolvido com o objetivo de refletir sobre a pluralidade dos povos indígenas no Brasil e a diversidade cultural que nos forma. O jogo conta a história de Maruaga, um menino caboclo descendente de um índio guerreiro que lutou pela preservação de sua etnia Waimiri-Atroari na ditadura militar e aborda temas como a história da resistência indígena, aspectos culturais, flora e fauna da região.

Outro recurso que explora as características dos jogos para gerar maior motivação em determinadas atividades é a gamificação. A gamificação é uma estratégia que consiste em usar elementos dos games em atividades que não são relacionadas com o mundo dos jogos. Por exemplo, usar pontuações, criar competição entre os participantes, usar níveis com complexidade crescente para alcançar determinados objetivos, usar narrativas e fantasia para promover maior imersão.

Um material para o estudo de expressões e gírias em Inglês usou como estratégia uma narrativa cheia de surpresas no formato de cartas de tarot. O SignCraft é um teste que constrói uma apresentação sobre a personalidade do estudante a partir de perguntas que ele responde escolhendo uma das cartas apresentadas. Essas cartas mostram expressões e gírias em Inglês, e o resultado pode ser surpreendente.

Mas, se o potencial dos jogos para aplicações em recursos educacionais mais estimulantes é gigantesco, nem sempre os resultados são satisfatórios e muitas vezes os jogos sérios e os processos de gamificação têm sido considerados chatos. Muitas pessoas gostam de jogar por diversão e entretenimento. No entanto, se um professor solicita que joguem para aprender algo, a brincadeira pode não ser tão agradável, alegre ou prazerosa como esperado. Por isso, muitos estudos buscam entender o comportamento do jogador e levantam questões importantes que precisam ser consideradas no desenvolvimento de um jogo que tenha como objetivo algo diferente da pura diversão.

DIVERSÃO

A palavra “diversão” está relacionada com diverso, diferente. Sua origem vem do latimdiversio. Já a palavra “divertir” vem dedivertere, que significa mudança de direção, desvio.

di·ver·são
sf
1 Ato ou efeito de divertir; divertimento, passatempo, recreio, recreação.
2 Mudança ou desvio da atenção do assunto em que se está concentrado; digressão, diversionismo.
3 Tudo aquilo que desviar o espírito das coisas que preocupam alguém; distração.

Geralmente dizemos que vamos fazer algo diferente, ou seja, divertido. A ideia de diversão está relacionada com recreio, passatempo, um momento breve e menos sério, a quebra da rotina e as surpresas decorrentes. A mudança no foco de atenção, o desvio, também pode divertir e é muito explorado em cenas de humor, quando se cria uma expectativa e se apresenta um desfecho inesperado que faz rir. 

O designer Schuytema conta que no projeto de um game sua equipe sempre leva em consideração a experiência do usuário:

Para nós, o modo mais fácil de pensar em uma experiência verdadeiramente divertida é o seguinte: é um momento em que suas expectativas são não apenas superadas, mas sacudidas de maneiras novas e inesperadas, e também é um momento que tem sabor de “instante fugaz” – acontece por um instante, e você sabe que não pode ser reproduzido (isso é muito importante).

(Schuytema, 2008, p.9)

O projeto SignCraft, por exemplo, apresenta o resultado dos testes de personalidade, com muito humor, mostrando que as expressões não podem ser traduzidas literalmente.

Também é comum dizer que vamos fazer algo para nos distrair. Quando o assunto é jogos, a distração ocorre por uma imersão no ambiente do jogo, uma experiência que exige tanta concentração que nos afasta da percepção banal da realidade cotidiana e nos leva a vivenciar outras realidades, as do mundo da fantasia. Mas tanta concentração poderia ser chamada de distração? 

IMERSÃO

Esse estado de concentração, ou estado de fluxo, é uma situação em que o jogador fica completamente envolvido com a ação de jogar, imerso no que chamamos de círculo mágico do jogo, distraindo-se completamente do mundo ao seu redor.
Estudos que investigam os fatores que contribuem para o engajamento do jogador destacam a importância da motivação intrínseca, ou seja, fazer algo por pura vontade, jogar por jogar, sem outros objetivos externos. Um bom exemplo é comparar com cozinhar. Se alguém faz uma comida por prazer em cozinhar, tem uma motivação intrínseca. Por outro lado, se a pessoa cozinha porque precisa comer, a motivação é externa e não terá o mesmo entusiasmo (Domingues, 2018).
Nos jogos, os fatores de estímulo devem ser contextuais, relacionados com o próprio jogo. Não é apenas a conquista final, mas a diversão, a riqueza do ambiente, o desafio, a emoção ao longo da jornada que importam.

Em um processo de gamificação ocorre o mesmo. Embora as recompensas externas, como notas e aprovação, possam ser exploradas e funcionar bem para atrair o estudante, elas devem ser integradas aos outros elementos do processo. É importante promover uma transição do foco de atenção desses elementos externos para a experiência de jogar, pois isso faz com que a atividade seja mais significativa e o interesse mais duradouro. 

No jogo Maruaga, por exemplo, o estudante descobre gradualmente as comidas típicas, artesanato, flora, fauna e pontos turísticos da região, ao mesmo tempo em que conhece a história e desenvolve uma conexão com o personagem.

Outro aspecto importante para que o jogador permaneça no estado de fluxo é que os desafios devem ser proporcionais ao seu nível de habilidade, ou seja, nem muito difíceis, nem tão fáceis. Se os desafios forem maiores do que a habilidade necessária para enfrentá-los, o jogo será frustrante, enquanto se forem pequenos, a sensação será de tédio.

Gráfico do canal de fluxo. Fonte: (Luz, 2018, p.43)

Um contexto que promove o estado de fluxo é aquele que apresenta uma tarefa clara e adequadamente difícil de ser cumprida, exigindo atenção, participação ativa e controle, na qual o participante está constantemente ciente de seu desempenho.

(Arrivabene, 2020, p.26)

A diversão é uma sensação de prazer que ocorre quando o cérebro libera doses de substâncias como dopamina e serotonina como resposta à solução de um problema, uma descoberta, uma conquista. Os problemas oferecidos pelos jogos não são reais, mas as emoções precisam ser.

EMOÇÃO

Outros estudos têm buscado entender por que os desafios são percebidos como diversão, e não como um trabalho cansativo. O que faz com que o jogador/estudante se sinta engajado na história e envolvido em solucionar esses problemas? Quais impulsos e desejos básicos da psique humana podem ser estimulantes?
Um dos primeiros estudos sobre os jogos foi desenvolvido pelo sociólogo francês Roger Caillois, em 1958. Ao buscar entender o que promove a atração pelos jogos, ele identificou quatro impulsos básicos que são explorados para envolver os jogadores.

Agon – é o desejo de competir e vencer um adversário pela força ou habilidade;

Alea – é um desejo relacionado com a sorte, com a fé, correr um risco e torcer para dar certo;

Mimicry – é o prazer da fantasia, da imaginação, um impulso natural de imitar comportamentos e viver situações fictícias;

Ilinx – é um impulso ligado aos riscos físicos, às sensações estimulantes como a velocidade e a vertigem.

A partir desses estudos, outros pesquisadores e designers foram identificando estímulos que podem ser motivadores para a atividade de jogar. O designer de games, Marc LeBlanc, fez uma lista com oito tipos de prazeres encontrados nos jogos.

Sensorial – prazer relacionado com os sentidos, movimento, visão ou audição; Fantasia – prazer de imaginar;

Narrativa – satisfação em acompanhar eventos, sejam dramáticos, trágicos ou cômicos;

Desafio – prazer de ser desafiado a resolver um problema;

Companheirismo – prazer de estar junto com outros, competindo ou cooperando; Descoberta – prazer da surpresa;

Expressão – prazer de agir de forma autêntica e expressar sentimentos;

Submissão – prazer de aceitar as regras e de criar estratégias para agir de acordo com os limites.
(Arrivabene, 2020).

Luz (2020) também elenca alguns motivos para o envolvimento com o ato de jogar e destaca que gostamos de aprender. A aprendizagem é estimulada por desafios que nos exigem aprender mais, desenvolver novas habilidades e ampliar o repertório.
Essa lista pode ser ampliada e os estímulos podem ser combinados para a criação de jogos envolventes. O importante é refletir sobre esses desejos e impulsos como ponto de partida para o design de um jogo ou processo de gamificação educacional.

EDUCAÇÃO

Como podemos perceber, o uso de games ou da gamificação pode ser útil nos processos educacionais, gerando maior motivação e facilitando a compreensão de temas complexos. Além disso, pode contribuir para o desenvolvimento de diferentes habilidades, como a criação de estratégias para resolução de problemas, a tomada de decisões rápidas, e o raciocínio lógico, bem como favorecer a socialização dos estudantes. Mas, se a motivação do jogo precisa ser intrínseca, baseada no prazer de jogar por jogar, como fazer um jogo educacional ou uma estratégia de gamificação em que o objetivo é a aprendizagem, ou seja, algo externo ao jogo? Jogar porque o professor solicitou a atividade parece contrariar a essência do jogo.
Assim como em qualquer projeto de design, o projeto de um game deve partir dos desejos e necessidades dos usuários e observar as formas de uso ao longo do desenvolvimento de todo o trabalho. O design de um jogo não começa com a definição de regras e mecânicas do jogo, mas do que o jogador fará, por que e como será motivado a fazer tais ações, quais seus objetivos e interesses.

O processo de gamificação também considera a interação do usuário como o foco principal, desde a concepção do trabalho. O projeto não visa o desenvolvimento de uma tecnologia, mas criar uma estratégia para promover o engajamento do estudante e oportunizar uma experiência significativa e prazerosa de aprendizagem.

O game designer e professor da Carnegie Mellon University, Jesse Schell (2011), em seu livro A Arte de game design, propõe uma metodologia para o design de games dividindo o trabalho em partes e para cada parte elabora um grupo de perguntas que ele chama de Lentes. A “Lente da Experiência Essencial” funciona como um framework inicial para o projeto de um jogo e consiste nas seguintes perguntas:
– Qual experiência desejo que o jogador tenha?
– O que é essencial para essa experiência?
– Como meu jogo pode capturar essa essência e induzir essa experiência? (Arrivabene, 2020, p. 78)
Veja, por exemplo, as respostas emocionais desejáveis, que serviram de guia para a criação de alguns jogos:
Charades: Companheirismo, expressão, desafio.
Quake: Desafio, sensação, competição, fantasia.
The Sims: Descoberta, fantasia, expressão, narrativa.
Final Fantasy: Fantasia, narrativa, expressão, descoberta, desafio, obediência. ( Hunicke; Leblanc; Zubek, 2004, p.5)

No jogo Maruaga foram explorados aspectos de desafio, fantasia e narrativa.

É necessário, também, que o professor faça um planejamento adequado para o uso de “jogos sérios” ou de gamificação na educação, tendo objetivos claros e sabendo explorar os aspectos lúdicos dos jogos.

RECOMENDAÇÕES

Veja algumas recomendações importantes para o desenvolvimento do design de games úteis para os projetos de jogos educacionais e para os processos de gamificação:
– O objetivo e as regras do jogo devem ser claros, mas de forma simples e intuitiva, sem a necessidade de um manual;
– O jogo deve oferecer pequenas conquistas;
– As ações do jogador devem fazer sentido no jogo, como modificar uma situação. E as conquistas devem depender de ações e habilidades do jogador;
– O jogo deve oferecer feedback, tanto positivo quanto negativo;
– As atividades intensas não devem ultrapassar 75% do tempo de jogo e precisam ser intercaladas com fases mais fáceis, de descanso (Schuytema, 2018).
E, por fim, uma recomendação importantíssima:
Leve em consideração os diferentes usuários, pois nem todos gostam do mesmo tipo de jogos. Aliás, alguns nem gostam de jogar. Lembre-se de projetar para favorecer a acessibilidade, considerando as diferentes formas de jogar.

REFERÊNCIAS

ARRIVABENE, Rafael M C. Introdução didática ao game design. Porto Alegre: Grupo A, 2020.

DOMINGUES, Delmar. O sentido da gamificação. Gamificação em debate. São Paulo: Blucher, p. 12-21, 2018.

HUNICKE, Robin; LEBLANC, Marc; ZUBEK, Robert. MDA: uma abordagem formal para o design e a pesquisa de jogos. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4575137/mod_resource/content/2/MDA_traduzido.pdf. Acesso em 13/09/2023.

LUZ, Alan R. Gamificação, motivação e a essência do jogo. Gamificação em debate. São Paulo: Blucher, p. 22-39, 2018.

SCHUYTEMA, Paul. Design de games: uma abordagem prática. Cengage Learning, 2008.

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