E A COMUNICAÇÃO COM OS SURDOS
O uso de um personagem associado a uma marca não é uma ideia nova. Alguns marcaram época nas campanhas publicitárias, outros perduraram no tempo representando as ideias das empresas e outros foram sendo atualizados.
Muitas pessoas ainda lembram da Ipirela nas campanhas dos postos de combustível Ipiranga da década de 1970. O Tony the Tiger surgiu em 1952 e ainda é o mascote da Kellogg’s. Casou, teve filhos, ficou mais forte e continua estampando as embalagens, roupas, jogos, brinquedos e participando das campanhas publicitárias da marca. O CB das Casas Bahia, que era um menininho, também cresceu e ficou adolescente, interessado em assuntos atuais, como games e sustentabilidade.
Mas as mudanças não foram apenas nas imagens. Com o avanço das tecnologias de computação gráfica e com a evolução da inteligência artificial, robôs já conseguem estabelecer uma conversa automática e os personagens ficaram mais sofisticados, humanizados e atuantes.
Em seu trabalho de conclusão do curso de Tecnologia em produção multimídia, Jéssica Vitória levantou uma questão importante. Como os influenciadores virtuais se comunicam com os surdos? Será que a comunicação que esses personagens estabelecem com os usuários é significativa para os surdos? Eles demonstram empatia com esse público?
No estudo, Jéssica investigou a representatividade da comunidade surda na comunicação dos influenciadores virtuais das principais marcas de varejo brasileiras e procurou identificar se existem características no design das personagens que poderiam favorecer essa relação com o público surdo. Para tanto, além de um estudo bibliográfico, fez uma enquete com surdos para conhecer suas preferências. Veja os resultados.
Como essa área do design vêm sofrendo importantes transformações, a nomenclatura também tem se renovado e se diversificado para refletir as diferentes funções assumidas pelos personagens, seus objetivos e as plataformas em que eles irão atuar. Veja as diferenças entre os principais termos usados:
Mascote: tem como foco representar uma marca e seu nome, sendo um ícone da marca;
Avatar: representa a persona da marca e é utilizado para algumas funções de comunicação da marca com a sua audiência;
Chatbot: é um software capaz de manter diálogo automático no atendimento ao cliente;
Assistente virtual: é um software que consegue responder algumas interações orais do usuário e é utilizado geralmente nos chats e WhatsApp da marca;
Influenciador virtual: busca humanizar ainda mais a marca e aumentar a credibilidade. A personagem tem história, emoções, problemas, opiniões e interage com o público em diferentes plataformas digitais.
Também existem os influenciadores virtuais que não estão vinculados à nenhuma marca, mas trabalham para várias delas, como a Vic Kalli, blogueira brasileira do mundo da moda e a Lil Michaela, que tem 19 anos, mora em Los Angeles e relata seu cotidiano nas redes sociais tendo mais de 3 milhões de seguidores. Lil Michaela participa de campanhas de empresas de moda e tecnologia, já apareceu em um desfile ao vivo e lançou obras de arte NFT e clipes de música.
A comunicação institucional necessita de objetivos claros e planejamento adequado, para não correr o risco de ser ineficiente ou mesmo antipática. Além disso, é importante considerar a diversidade e necessidade de inclusão social. As organizações mais atentas e atualizadas têm buscado se adaptar para oferecerem acessibilidade. Por isso, o design de um personagem relacionado com uma marca é desenvolvido de forma integrada com a identidade visual da empresa, o que se aplica, também, à criação de um influenciador virtual, que envolve um trabalho de marketing e produção de conteúdo.
Conforme Jéssica, o processo de criação de um influenciador virtual se dá a partir da junção da representação gráfica da marca com a estratégia de marketing e criação de conteúdo para as redes sociais.
A empresa Biobots, especializada na criação de avatares e produtos digitais, leva em média 90 dias para desenvolver um influenciador virtual e envolve uma equipe de 10 pessoas. Ricardo Tavares, CEO da Biobots, conta que o trabalho é organizado nas seguintes etapas:
– Briefing com várias perguntas sobre a visão de mundo da marca, personalidade do influenciador, interesses, atribuições físicas e imagens de referências.
– Desenho do avatar.
– Animação e detalhamento dos diferentes movimentos e poses.
– Storytelling, estratégia de marketing que consiste em criar uma história para que o público-alvo se conecte em nível emocional com o personagem.
– Criação de conteúdo para ser usado pelo influenciador virtual nas redes sociais. Esses conteúdos contribuem para marcar os gostos, visão de mundo e interesses do influenciador e da marca e podem incluir mostrar a rotina do personagem, a parceria com outras marcas ou outros influenciadores, as opiniões sobre assuntos atuais, além de promover interações visando aprofundar o relacionamento com os usuários.
(Ricardo Tavares, CEO da Biobots em entrevista para a revista Meio e Mensagem)
Além desse trabalho de criação, a comunicação institucional precisa manter um diálogo permanente com seu público, observando e respondendo às demandas. E isso exige reconhecer a diversidade. A comunidade surda é um público com características de comunicação específicas que merece uma atenção especial. No entanto, não foram encontrados estudos que demonstrem o desenvolvimento de personagens que gerem identificações com os surdos.
Visando contribuir para o design de influenciadores virtuais mais atrativos para os surdos, o estudo feito por Jéssica Vitória buscou identificar elementos da cultura surda que poderiam ser destacados.
Evidentemente, a comunicação em língua de sinais seria desejável, mas, além da língua de sinais, a cultura surda é marcada pela experiência visual que foi ao longo do tempo construindo referências, arte, humor e diferentes formas de perceber o mundo.
[…] a experiência visual dos surdos envolve, para além das questões linguísticas, todo tipo de significações comunitárias e culturais, exemplificando: os surdos utilizam apelidos ou nomes visuais; metáforas visuais; imagens visuais, humor visual; definição das marcas do tempo a partir de figuras visuais, entre tantas outras formas de significações.
(Skliar, 2001, p.176)
A arte expressa as diferentes formas de percepção e visões de mundo e, nesse sentido, a arte surda tem uma referência importante: o Movimento De’via – acrônimo para o termo em Inglês Deaf View/Image Art. O movimento surgiu na década de 1980 nos Estados Unidos e se espalhou pelo mundo. As obras se caracterizam não por serem feitas por surdos, mas por abordarem questões relacionadas com a surdez e a cultura surda. São produções de arte, desenvolvidas ainda hoje, que expressam a experiência de ser surdo e revelam momentos do seu cotidiano. Conforme o manifesto do movimento De’via:
A arte De’VIA pode ser identificada por elementos formais, como a possível tendência dos artistas surdos em usar cores e valores contrastantes, cores intensas e texturas contrastantes. Pode também incluir, na maioria das vezes, um foco centralizado, com exagero ou ênfase nas características faciais, especialmente olhos, bocas, orelhas e mãos. Atualmente, artistas surdos tendem a trabalhar em escala humana com esses exageros, e não exageram o espaço em torno desses elementos. As partes do corpo enfatizadas remetem à modalidade das línguas de sinais, que tem como meio de recepção os olhos e de emissão, as mãos, e às opressões que ocorrem por meio obrigação da fala e da leitura labial, evidenciadas pela presença das bocas. A presença das orelhas evidencia as tentativas de normalização da audição .
(Manifesto De’VIA, 1989)
Ou seja, as imagens se destacam por representações com exagero na proporção das partes do corpo que os surdos utilizam para se comunicar e pelo uso de cores vibrantes e contrastantes.
Partindo desse estudo teórico, foi feita uma enquete com estudantes surdos para verificar se no design dos influenciadores virtuais existem algumas características específicas que são realmente mais atrativas para os surdos.
Para identificar quais características dos personagens eram relevantes para a representatividade da comunidade surda, foi utilizada uma enquete apresentando personagens diferentes para que os surdos indicassem quais representavam melhor a cultura surda.
As imagens foram apresentadas em grupos de três personagens com diferentes características para comparação, alguns com mãos, boca e olhos em escala maior, e outros com essas características em tamanho menor. Participaram da enquete 20 estudantes surdos.
Ao analisar os dados das questões apresentadas, Jéssica concluiu que os estudantes demonstraram simpatia por personagens com as mãos em escala maior. Porém, devido ao número limitado de dados analisados, não foi possível evidenciar uma preferência dos surdos por olhos maiores ou bocas menores.
A partir da identificação dessas características, foi feita uma análise das mídias sociais de algumas marcas brasileiras com intuito de verificar se seus influenciadores virtuais possuíam características que representassem os surdos ou se buscavam alguma forma de comunicação mais apropriada para a visualidade surda.
No estudo, foram analisados os principais influenciadores virtuais das marcas de varejo brasileiras tendo como critério o maior número de fãs: Lu, da Magazine Luiza; CB, das Casas Bahia; e Nat, da Natura.
A Lu do Magalu está presente no YouTube, com canal próprio, no Instagram, TikTok e X (antigo Twitter). Os vídeos disponibilizam legendas automáticas, mas não contam com a janela de Língua Brasileira de Sinais (Libras).
A Casas Bahia utiliza o X, YouTube e TikTok . O CB aparece no perfil, em publicações e vídeos abordando vários assuntos. Os vídeos possuem legendas e alguns têm janela de Libras.
A Nat está mais presente no X. Aparece também em algumas publicações do Instagram e TikTok, sem nenhum recurso de acessibilidade.
Algumas marcas disponibilizam o recurso do tradutor automático em seus sites, mas sem nenhuma personalização e nenhum dos influenciadores virtuais se comunica com a comunidade surda por meio da língua de sinais.
Por fim, o estudo indica que no processo de design de um influenciador virtual seria importante levar em consideração como o surdo se sente representado.
Seria muito útil para os surdos o personagem dialogar utilizando a língua de sinais. Caso isso não seja possível, Jéssica sugere que o próprio influenciador virtual faça referência ao tradutor automático de Libras, convidando os surdos para fazerem uso desse recurso.
Na etapa de criação de conteúdo, as marcas podem apresentar o sinal de seus personagens em Libras, abordar situações do dia a dia de uma pessoa surda, bem como curiosidades sobre a surdez.
Isso não seria bom apenas para os surdos, mas também para os ouvintes, que passariam a compreender melhor as diferenças da cultura surda. Além do mais, seria um ótimo marketing para empresas se diferenciarem junto a um amplo público, antes desconsiderado, e promoverem uma boa imagem social de suas marcas.
Referências
MEIO&MENSAGEM. Como os influenciadores virtuais são criados? Disponível em:
https://www.meioemensagem.com.br/proxxima/arquivo/noticias/como-os-influenciadores-virtuais-sao-criados.
NEVES, Gabriele Vieira. Corpos surdos na arte De’via: resistências políticas das imagens. Palhoça, 2021.
SKLIAR, C. Perspectivas políticas e pedagógicas da educação bilíngue para surdos. In:
SILVA, Shirley; VIZIM, Marli. Educação Especial: múltiplas leituras e diferentes significados. Campinas: Mercado de Letras/ALB, 2001. p. 85-110.
VITÓRIA, Jéssica. Design de influenciadores virtuais das marcas brasileiras e a representatividade da comunidade surda. TCC defendido no Curso de Tecnólogo em Produção Multimídia, em defesa pública em Jul 2023.