D’arc: uma revista feminista
Na história do design gráfico, o design de revistas se destaca porque foi responsável por muitas inovações que influenciaram transformações nas áreas da tipografia, ilustração, fotografia e infografia. As revistas contribuíram para mudanças nos estilos de vida, na moda, na decoração, nas artes, na cultura em geral. É incorreto afirmar que as mídias determinam comportamentos, mas as revistas retratam mais do que a realidade. Se por um lado apresentam os fatos e revelam as formas de vida de um contexto social específico, por outro, estabelecem um discurso próprio e interferem na cultura, participando do debate na complexa rede de influências e relações de poder. Ao apresentarem as opiniões de escritores, jornalistas, cientistas e de diversas personalidades marcantes, ao mostrarem o trabalho de ilustradores e fotógrafos surpreendentes e ao explorarem o design de forma provocante, as revistas promovem reflexões e vendem ideias e produtos para leitores que não são passivos, são críticos e escolhem os tipos de publicações com as quais se identificam. Abre-se o debate. As revistas femininas e feministas são um bom exemplo dessa história.
Revistas para as damas, para as mulheres ou para você?
As primeiras revistas que temos notícia foram publicadas por sociedades científicas no século XVII. As revistas modernas (magazines) foram ganhando importância e aumentando a circulação explorando matérias variadas, como notícias, opinião, literatura, comentários políticos e comportamento. E foram se especializando e se direcionando para públicos mais específicos.
A primeira revista feminina, The Ladies Mercury (O Mercúrio das Damas), foi lançada em Londres no ano de 1693. O foco da revista era nos conselhos sentimentais em resposta às cartas das leitoras, porém era feita por homens. A primeira feita por mulheres só surgiu em 1741, também na Inglaterra, a The Female Spectator (A Observadora) foi fundada por Eliza Haywood, que era uma importante e polêmica escritora e atriz de teatro. A revista dava opiniões sobre casamento, filhos e comportamento e defendia a educação e o trabalho feminino.
A composição das páginas era feita na própria oficina de tipografia, pelos impressores da época. Não havia um projeto de design gráfico.
As revistas femininas dos séculos XVIII abordavam resenhas de livros, poesia, música, moda, beleza, bordados, figurinos, saúde e conselhos variados. No século XIX, os anunciantes já sabiam que as mulheres eram um gigantesco e importante público consumidor e as revistas para as donas de casa da classe média faziam sucesso. Foi nesse período que algumas revistas passaram a abordar pautas relacionadas ao feminismo e a defender os direitos das mulheres, como o direito ao voto.
As ilustrações ganharam muito destaque. Aliás, os ilustradores eram verdadeiras celebridades e, além de desenhos decorativos, caricaturas, figurinos e sátira política, eles passaram a retratar com detalhes os fatos do dia a dia e os acontecimentos importantes, como as batalhas. No final do século, o desenvolvimento das técnicas fotográficas foi mais uma inovação importante no design de revistas.
Revistas femininas e feministas no Brasil
No Brasil, até 1808 nem sequer havia imprensa, era proibido. As revistas começaram a circular clandestinamente e vinham da Europa. Só com a vinda da Corte para o Brasil é que começaram a surgir as primeiras publicações. Nesse período do Império, no início da imprensa brasileira, as opiniões de algumas autoras já defendiam o fim da escravidão e a instauração da república.
A primeira revista feminina brasileira tinha o nome de O Espelho Diamantino(1827). Em seguida, outras foram surgindo, como O Espelho das Brasileiras (1831) e O Correio das Modas (1838), que atualizavam as mulheres sobre os acontecimentos na política, nas artes e na moda, em especial sobre o que acontecia em Paris, e já publicavam textos defendendo a melhoria da educação das meninas, uma luta importante para aquela época. Uma revista que pode ser considerada feminista era O Jornal das Senhoras(1852), porque defendia a emancipação moral da mulher, a igualdade entre os sexos e a valorização profissional.
A partir daí, a luta pelo direito ao voto fortaleceu o movimento de mulheres. Várias publicações dirigidas por mulheres enfatizavam essa pauta, como O Bello Sexo (1862), Sexo Feminino (1873), A Voz Feminina(1901), O Nosso Jornal (1919), A Revista Feminina (1915), O Voto Feminino (1929).
O direito ao trabalho e a educação foi a mais forte reivindicação feminina após a conquista do direito ao voto. Apesar das conquistas, com a ampliação da participação feminina no mercado de trabalho a partir da década de 1950, as profissões eram muito relacionadas com atividades de cuidado, educação ou funções burocráticas. O imaginário social na sociedade patriarcal enfatizava que a função da mulher era cuidar da casa e dos filhos e havia muito preconceito e muita opressão. Ainda hoje as mulheres não conquistaram posição de igualdade nas funções de maior poder decisório, pois continua sendo necessário o enorme e constante esforço para evitar o preconceito que relaciona gênero e capacidade intelectual, gênero e responsabilidade ou profissionalismo.
A modernização da sociedade nas décadas de 1960 e 1970 não foi capaz de evitar a opressão masculina, e a ditadura militar impôs mais restrições. No Brasil, o feminismo perde força porque a luta mais importante era por uma sociedade mais justa, pelo fim do autoritarismo, da censura, das prisões e execuções de pessoas com posições políticas contrárias ao governo militar e ao liberalismo econômico.
Mas o que chamamos de feminismo engloba muitas visões diferentes e até contraditórias. Nesse período, as feministas liberais buscavam implementar reformas progressivas e defendiam direitos iguais entre homens e mulheres. As revistas Cláudia (1962) e Nova (1973) surgiram nesse contexto de estímulo ao liberalismo econômico e ao consumo, e publicavam matérias relacionadas ao movimento internacional pela liberação sexual e profissional da mulher, representando e incentivando mudanças no comportamento.
Outros grupos mais radicais envolviam ação política, formação de movimentos sociais e associações de mulheres e ampliaram discussões relacionadas a questões de gênero e classe social.
Com a abertura política e o fim da ditadura militar na década de 1980, observa-se o surgimento do movimento feminista de militância política nas universidades e os estudos acadêmicos sobre o tema.
Essa nova fase no feminismo global é influenciada por autores como Michael Foucault e revelam como os discursos sobre gênero permeiam as relações de poder. Esses estudos contribuíram para quebrar a ideia de determinismo biológico, a ideia de que existe uma identidade típica da mulher. A identidade depende de muitos fatores, como classe, raça, sexualidade, idade etc. e, para compreender o que caracteriza a vida feminina, o gênero é apenas mais um elemento. Os estudos de gênero desconstroem a oposição binária (homem x mulher) e acolhem outras lutas, como aquelas relacionadas com o racismo, o classismo e a homofobia.
Atualmente, o movimento feminista explora a internet e as redes sociais ampliando a discussão política e acadêmica e promovendo manifestações contra a cultura machista, o assédio, o estupro, a violência, as diferenças salariais, a proibição do aborto, entre tantos outros temas relacionados à luta das mulheres. As hashtags Nem uma a menos e Meu primeiro assédio, usadas para incentivar os depoimentos e denúncias, são um exemplo da importância das redes.
O feminismo contemporâneo não é das mulheres, é de todos. Afinal, há mulheres que promovem o machismo em suas atitudes ou na forma de educar os filhos, por exemplo, e há muitos homens que defendem a igualdade de direitos independentemente de gênero, são contra a violência e o preconceito e principalmente adotam a causa feminista no seu dia a dia.
As publicações feministas continuam sendo um dos principais recursos no esforço para a erradicação da opressão patriarcal, apresentando discussões teóricas e ideias para a implementação de políticas públicas, explorando o design para tocar a imaginação, a emoção e a percepção.
O feminismo em revista
É interessante observar o grande número de pesquisas relacionadas com a produção de revistas, sejam pesquisas históricas, sobre o design, estudos comparativos das capas, análises dos discursos, entre outras abordagens. Veja alguns estudos:
Revistas femininas do século XIX: os primeiros passos. CARLOS COSTA.
Novos paradigmas: revistas feministas na década de 90. PAMELA PENHA
Feminismo e recortes do tempo presente: mulheres em revistas “femininas”. TANIA NAVARRO SWAIN, 2001.
Feminismo em Pauta: a narrativa das capas das principais revistas femininas KARINA PIZZINI; VALQUÍRIA MICHELA JOHN,
O Feminismo para as Mulheres: Uma Análise Discursiva das Revistas Femininas Brasileiras Online. JULIANA COSTA DA SILVA, 2018.
Revistas acadêmicas e ativismo: Feminismo acadêmico em universidades latino-americanas, entre conhecimento científico e político. RÊGO, SÉRGIO; LAGE, ALLENE, 2019
Análise semântica de capas tipográficas de livros feministas: discussões sobre performatividade de gênero. OLIVEIRA, Gabriela; LIMA, Samara. Revista Brasileira de Design da Informação / Brazilian Journal of Information Design São Paulo | v. 18 | n. 2 [2021], p. 1 – 26.
As análises mostram que os temas feministas foram ganhando importância e visibilidade nas revistas femininas, mas muitas abordagens adotam um tom tradicionalista e os estudos criticam as representações do feminino em muitas delas. As revistas femininas geralmente apresentam muitos anúncios e usam a segunda pessoa do singular (tu ou você) para conquistar intimidade com as leitoras ao adotarem o tom de conselheiras. Já as revistas feministas utilizam um discurso mais objetivo, sem foco nos anúncios e se aproximam mais do jornalismo, com textos mais precisos.
Outros estudos, mais voltados para o design mostram como os significados são gerados nos detalhes. No artigo Análise semântica de capas tipográficas de livros feministas: discussões sobre performatividade de gênero, por exemplo, as autoras buscam compreender o uso da tipografia nas capas de livros identificando contrastes entre as representações femininas do senso comum e as imagens do discurso feminista. Baseadas em diferentes autores, mostram que as tipografias podem ter gênero. As fontes grossas, pesadas, geométricas, sem serifa ou com arestas pontiagudas são geralmente percebidas como masculinas, enquanto fontes mais leves, caligráficas ou curvilíneas são usadas para representarem temas relacionados com as mulheres. No entanto, nas capas de livros com temas feministas ocorre o oposto.
O design de revistas é um dos trabalhos mais desafiadores desta área e sua história mostra a influência desse tipo de produto no mundo cultural e na transformação do design gráfico com suas ousadas inovações.
Design de revistas
Conforme Fátima Ali, autora do livro A arte de editar revistas:
A revista precisa ter uma identidade própria consistente, que transmita personalidade. Cada revista tem um diferencial e um público específico e necessita representar isso em suas páginas.
Para desenvolver o projeto gráfico de uma revista, é importante sintetizar a ideia principal, a filosofia e a missão da revista em algumas palavras-chave, ou seja, os conceitos que irão guiar o trabalho. Os textos, as capas, a abertura de cada matéria, títulos, fotos, ilustrações, tudo precisa estar conectado com os conceitos. Os elementos gráficos que se repetem fazem com que o leitor tenha a sensação de familiaridade.
Em uma publicação que é periódica, é fácil perder o rumo, desviar o foco. É preciso saber valorizar a identidade da revista em cada edição e em cada matéria. Isso não significa monotonia, a surpresa também é importante em uma revista. Os leitores encontram o que querem saber e descobrem o que nem imaginavam encontrar. E a identidade não é algo fixo, é dinâmica, se atualiza e amadurece, como a identidade de uma pessoa. Cada edição da revista deve ser surpreendente, sem perder a identidade.
O visual é muito importante, da mesma forma. As revistas são tanto para serem lidas, como para serem olhadas. Não se abre uma revista na primeira página e se lê até o final. Damos uma olhada geral, observamos as imagens mais impactantes, os títulos, lemos primeiramente o que nos interessa mais, depois voltamos para ler mais algumas coisas, e assim por diante.
A revista D’arc é um exemplo de publicação que tem como objetivo o ativismo feminista. E o design precisa representar essa ideia. Veja como foi desenvolvido seu projeto de identidade visual.
Revista D’arc
O PROJETO
A IDEIA: A revista tem como tema o feminismo, podendo servir de material didático. Os conteúdos tratam de pessoas marcantes de antigamente e da atualidade, o feminismo no mundo audiovisual, curiosidades e discussões sobre o tema. O público principal são estudantes do Ensino Médio.
CONCEITOS: plural, pop, político e jovial
CARACTERÍSTICAS: Bilinguismo (Libras/português); interatividade; apresenta fatos históricos;
Mostra o feminismo desatrelado à gênero (todos podem ser feministas); considera feminismo e feminino conceitos diferentes; há a possibilidade de baixar uma versão da revista em PDF.
PERSONA: Para definir o perfil da revista e definir o público-alvo, que é bem amplo e envolve homens e mulheres jovens de diferentes classes sociais, a equipe criou uma persona. Essa personagem fictícia, ajuda a se definir o tom e a estabelecer uma conversar com um leitor, imaginário.
Nome: Sky
Profissão: Estudante de Ensino Médio
Renda Familiar: R$ 2 500
Hobby: Andar de skate, assistir vídeos e usar redes sociais
Matéria favorita da escola: Matemática
Cor favorita: Azul
Gosta de ler? Não
Já leu revista? Folheou algumas
Rede social favorita: TikTok
Jogo favorito: Sonic
Inspiração: Beyoncé
Prefere fazer compras em lojas virtuais? Sim
Assiste vídeos na velocidade normal? Não
IDENTIDADE VISUAL
O projeto do nome e da marca gráfica buscou transmitir os conceitos de forma marcante. O nome se refere à Joana d’Arc, uma camponesa francesa que participou da Guerra dos Cem Anos e chegou a comandar um exército com 7 mil homens na defesa de sua pátria. Foi condenada por heresia e feitiçaria e queimada em uma fogueira com apenas 19 anos de idade.
O design da marca gráfica utilizou um estilo retrô e usa recursos gráficos que remetem aos cartazes alternativos muito usados nas impressões de fundo de quintal nas lutas por direitos sociais.
PROJETO GRÁFICO
O projeto gráfico envolve a definição das seções, formato, tamanho dos blocos de texto, tipografia, cores, margens, tipo de ilustração, elementos gráficos e até mesmo como serão tratados os espaços vazios.
A revista D’arc apresenta quatro seções:
MULHERES IMPORTANTES
Mostra a história de pessoas que são/foram importantes para o feminismo e mulheres que fizeram grandes feitos para a ciência e para a tecnologia.
VOCÊ JÁ VIU?
Oferece dicas de conteúdos audiovisuais, músicas, livros e arte feitos por mulheres ou que abordem o feminismo.
LINHA DO TEMPO
Aborda a história do feminismo.
JOGO & MUNDO
Jogo para uso educacional, com o tema feminismo.
Para a revista digital foi adotada uma página com rolagem infinita. A tipografia escolhida é sem serifa, adequada para a leitura em tela.
A escolha da fonte para os textos é muito importante e, além de refletir a personalidade da revista, precisa ter boa legibilidade; para a fluidez da leitura a para facilitar a compreensão do texto, temos que considerar a leiturabilidade. Se os espaçamentos entre as linhas são pequenos, por exemplo, no momento da leitura podemos voltar à linha já lida e isso é péssimo. A largura do bloco de texto, o peso da fonte e o tipo de alinhamento podem interferir na leiturabilidade. Uma coluna de texto estreita, com alinhamento justificado, pode criar buracos nas linhas de texto que prejudicam o ritmo de leitura.
Os blocos de texto mais largos favorecem uma leitura mais concentrada e aprofundada, e transmitem a ideia de que é um conteúdo importante, as colunas mais estreitas, são para leituras mais rápidas, como em páginas de jornais. Na revista D’arc, os textos foram dispostos em uma ou duas colunas, dependendo do conteúdo. E os alinhamentos são à esquerda.
Os espaços vazios são muito importantes. Veja que o design da revista D’arc utiliza margens e espaços entre títulos e texto amplos. Isso confere elegância à página e conduz o olhar do leitor agradavelmente.
Os títulos e as imagens devem revelar o conteúdo de forma clara e atrair o leitor. Fatima Ali diz que se o leitor não captar o que título e imagem de capa significam, algo está errado. Não se deve esperar que o título faça sentido só depois do leitor ler o texto todo. Ela recomenda iniciar cada matéria pelos pontos mais dramáticos e importantes, em vez de contar a história do início ou começar com nomes ou descrições longas do lugar. Usar uma pergunta, afirmar algo inesperado, chamar a atenção para o principal, pode ser muito útil.
Outra recomendação interessante é não usar legendas óbvias para as imagens. Não basta dizer o que a foto mostra. A legenda deve ser breve, significativa e atrair o leitor.
A definição dos elementos gráficos e imagens são planejados visando contribuir para valorizar a identidade visual.