A pesquisa mostra o processo de aprendizado das crianças durante as brincadeiras e atividades em sala de aula, a partir do olhar de uma surda. Uma, não, duas. A autora surda, que também expõe suas percepções, entrevista uma professora surda que narra a experiência pessoal no uso de recursos lúdicos, como jogos e brincadeiras, apresentando suas realizações e dificuldades.
A reflexão feita nos abre os olhos para entendermos melhor a forma visual dos surdos se orientarem no mundo. O tema apresentado de forma tão vívida é esclarecedor.
O projeto partiu do interesse e experiência particular de Caroliny que, no estudo de caso, elaborou uma pesquisa bibliográfica e utilizou a técnica de entrevista para o levantamento de dados.
O interesse em pesquisar sobre o lúdico remonta a minha própria história de vida. Sou surda e diferentemente de muitos outros surdos, que nascem em famílias ouvintes que desconhecem a língua de sinais e só passam a adquiri-la tardiamente, por iniciativa da minha mãe, comecei a aprender a língua de sinais com treze meses de vida. É a minha primeira língua. Desta forma, o lúdico esteve presente em minha infância nos desenhos animados que eu via na televisão. Observava o visual, as expressões faciais, os movimentos dos corpos dos personagens; no entanto, os diálogos não eram acessíveis para mim. A Turma da Mônica é uma das minhas referências mais felizes da minha infância, pois conseguia entender os contextos dos personagens, suas expressões faciais.
Caroliny Felício
A trajetória escolar da Caroliny também passou pela Educação Infantil com colegas e professores ouvintes. Mas foi quando estudou Libras no Instituto de Audição, Terapias Integrativas e da Linguagem (IATEL), com colegas e professores surdos, que as atividades lúdicas se destacaram como estratégia eficiente para despertar seu interesse e favorecer a aprendizagem. Vivenciar jogos e brincadeiras adaptados para surdos possibilitava a aquisição da língua de sinais de forma prazerosa.
O aprendizado de coisas novas ocorre quando a criança consegue fazer relações com seus conhecimentos prévios. Mas a aprendizagem não é algo inato, não se aprende sozinho.
Enquanto as crianças ouvintes acompanham as falas ao redor, mesmo quando não estão diretamente envolvidas na conversa, elas obtêm informações sobre o mundo, desenvolvem intelecto, ampliam repertório e refletem sobre as relações interpessoais, valores e sentimentos das pessoas. Em um mundo cercado por ouvintes, a criança surda fica impossibilitada de receber essas informações, a não ser que alguém, intencionalmente, se dirija a ela em língua de sinais para explicar, descrever, estabelecer relações e comparações, ensinar. Assim, a criança apenas observa e faz conjecturas a partir do que o mundo visual oferece. Muitas vezes, essa criança se mostra desinteressada, alheia, sem compreender o que se passa e sem conseguir formar conceitos coerentes sobre o que vê, perdendo a oportunidade de aprendizagem, desenvolvimento linguístico e interação social.
A autora, que utilizava a Libras com sua mãe desde bebê, diferentemente de outros surdos que aprenderam uma língua apenas tardiamente, utiliza diversos autores para afirmar a importância da língua de sinais no desenvolvimento dos surdos.
Quando a criança ouvinte elabora suas primeiras perguntas, assimila nomes de objetos em seu contexto, ela está aprendendo e se desenvolvendo. No caso da criança surda, se ela estiver já em contato com a língua de sinais, língua visual, irá se desenvolver linguisticamente da mesma forma que a criança ouvinte, entretanto, o mais comum ainda é a exposição à oralização, o que provoca um grande atraso em seu desenvolvimento.
Caroliny Felício
A língua está profundamente relacionada com o pensamento e com o desenvolvimento das funções cognitivas. Ou seja, para promover o desenvolvimento da criança surda é fundamental que ela aprenda uma língua em idade adequada e possa se comunicar e interagir com outros usuários dessa língua. E a língua de sinais é a língua natural dos surdos.
Acreditamos que para a criança surda é fundamental o contato com a língua de sinais que possibilitará que se desenvolva integralmente e tenha interesse por si e pelo mundo. Se a criança surda não tiver a oportunidade de ser alfabetizada em sua língua natural, ela não acessará o desenvolvimento da linguagem que aproxima a criança dos seus pensamentos e dos pensamentos dos outros, de outra forma ela persistirá na imitação e chega um momento que esta já não contribui mais em seu processo de aprendizagem em níveis mais abstratos, limitando-se somente ao concreto.
Caroliny Felício
Na Educação Infantil, o desenvolvimento da linguagem e a integração social das crianças são os principais objetivos do trabalho e a aprendizagem deve se dar de forma significativa e estimulante. As atividades lúdicas são as ferramentas mais adequadas para isso, explorando vivências que favorecem o desenvolvimento de variadas habilidades, a aquisição de novos conceitos, a ampliação do vocabulário, além de promover a interação e a cooperação.
O lúdico se refere à várias coisas que promovem diversão e entretenimento, como jogos, brincadeiras, competições e representações teatrais. Atividades lúdicas também promovem a aprendizagem e a integração social e são fundamentais para o desenvolvimento do público da Educação Infantil.
Vários autores destacam como o lúdico pode contribuir para o desenvolvimento das crianças:
– Ao explorar a imaginação para reformular a experiência cotidiana, a criança produz uma forma complexa de compreensão do mundo.
– Ao brincar, a criança imita e ressignifica a realidade vivenciada. Articulando imitação da realidade e imaginação, a criança atribui novos significados para a experiência pessoal, no plano das emoções e das ideias.
– As brincadeiras contribuem para o desenvolvimento de recursos cognitivos como o raciocínio, tomada de decisões e solução de problemas.
– As brincadeiras instigam o desenvolvimento do potencial criativo e propiciam que as crianças façam descobertas.
– As brincadeiras são uma fonte de conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmo.
– A brincadeira propicia o desenvolvimento da motricidade e noção espacial.
– Ao brincar, a criança desenvolve capacidades como atenção, memória e imaginação.
– Na brincadeira, a criança aprende regras e limites.
– A brincadeira propicia o desenvolvimento de áreas da personalidade como afetividade, inteligência e sociabilidade.
– A brincadeira é importante como forma de participação social e a interação propicia, facilita e estimula a aprendizagem.
– Na brincadeira, o ambiente descontraído e divertido tende a criar um clima de compreensão e de afetividade entre as crianças.
– As brincadeiras são atos sociais e possibilitam a apropriação, ressignificação e reelaboração da cultura.
– Na brincadeira, a criança modifica hábitos e comportamentos usuais.
Mas, para que seja divertido, é necessário que exista um estado de envolvimento pleno, de imersão, de inteireza, e isso diz respeito à realidade interna do indivíduo. É preciso que as atividades sejam adequadas ao momento de vida, interesses, habilidades e conhecimento de mundo de cada criança.
Caroliny aponta vários estudos sobre o lúdico, mas em sua grande maioria são desenvolvidos observando as crianças ouvintes. Assim como os recursos didáticos disponíveis, por exemplo, jogos e brinquedos, são geralmente planejados para ouvintes e nem sempre são adequados para crianças surdas. Portanto, é necessário refletir: como as atividades lúdicas podem promover o envolvimento de crianças surdas, que características os jogos e brinquedos devem ter e qual é a função do professor no desenvolvimento, adaptação e uso dos materiais?
Caroliny investigou o trabalho de uma professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que é pesquisadora na área de educação bilíngue de crianças surdas. A profissional possui graduação em Pedagogia, mestrado em Educação e experiência na educação de crianças surdas na Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE) e no IATEL.
A maioria dos brinquedos e recursos educacionais para a Educação Infantil não apresenta informações em Libras e não explora recursos visuais considerando a acessibilidade dos surdos. Os materiais pedagogicamente preparados para crianças surdas geralmente visam o ensino de Libras. E, conforme a professora entrevistada, desenvolver materiais e estratégias que corroborem didaticamente é um enorme desafio para o professor surdo e/ou bilíngue, já que precisa transitar da cultura ouvinte, utilizada no currículo atual, para atividades e recursos condizentes com a cultura surda, adaptando os recursos e currículo.
FFoi quando começou a usar imagens de forma estratégica para apresentar alguns conteúdos para as crianças surdas que percebeu a importância de ter disponível recursos apropriados. As crianças se mostravam mais interessadas pelas atividades, faziam perguntas, participavam mais e a aprendizagem começava a fazer sentido. A professora sentiu então a necessidade de assumir o papel de produtora de recursos educacionais para que pudesse atingir seus objetivos pedagógicos.
Conforme a entrevistada, os materiais e jogos produzidos manualmente pelos professores surdos são de três tipos:
– criados (inéditos);
– adaptados (nos aspectos culturais e estruturais);
– traduzidos (língua de instrução).
No entanto, ela destaca que não oferece jogos aos alunos de forma desorientada. É necessário ter um encaminhamento pedagógico com objetivos claros. Especialmente no trabalho com crianças surdas é importante considerar a experiência prévia do aluno. Se essa criança, convivendo em ambiente de ouvintes, sem comunicação na língua de sinais, foi acostumada a brincar sozinha, jogando sem regras e sem objetivos, ela terá necessidade de adaptação e orientação adequadas.
Além de criar ou adaptar recursos educacionais, o professor também tem o papel de mediador da ação de brincar e aprender. Um professor surdo ou fluente na língua de sinais é muito importante nessa fase do desenvolvimento da criança surda. Além de auxiliar na aquisição da língua de sinais e na ampliação do repertório, também contribui para promover a integração e o reconhecimento de sua identidade.
O brincar ganhará mais vida para a criança surda, mediante o processo comunicativo de uma mesma língua, ela terá condições de socializar seus pensamentos e sentimentos. Aprender significa conseguir associar o conhecimento em vários contextos.
(Professora surda)
Quando a criança se comunica na língua de sinais, o universo da brincadeira fica mais amplo e a criança pode se integrar nas ideias e fantasias junto aos amigos.
Ela pode explicar para o amigo o que está representando na brincadeira ou do que pretende brincar. Pode pegar uma cobra de pano, por exemplo, e indicar para a outra criança que aquilo virou uma moto. Esse ato de brincar com as ideias é essencial no desenvolvimento infantil.
(Professora surda)
Certamente, quando a criança surda é exposta a situações que exploram prioritariamente os recursos sonoros, seja para instrução ou como estratégia educacional, como o uso da música sem recursos de acessibilidade, ela se sentirá desmotivada e desvalorizada.
O surdo necessita da experiência do concreto, de tocar, de mexer, “colocar as mãos na massa”, dessa forma eles conseguem absorver o conteúdo. Quando a criança inclui o brinquedo na brincadeira, ela concretiza seus pensamentos naquele objeto. A brincadeira para a criança surda estimula sua subjetividade. Estimula, anima, dá sentido as coisas. Por isso é tão importante os jogos terem uma cultura visual fortemente impressa para atingir as especificidades da criança surda.
(Professora surda)
Evidentemente são muitas as variáveis que influenciam o interesse da criança e será preciso considerar as diferenças individuais e subjetividades, isso é parte do papel de mediação do professor.
Conforme a professora entrevistada, a necessidade de materiais adequados não significa que todos os recursos lúdicos devam ser com Libras ou desenvolvidos especificamente para os surdos. A criança surda brinca da mesma forma que as ouvintes, explora qualquer objeto do cotidiano, cria, fantasia e troca ideias, mas na brincadeira, a imaginação e o “faz de conta” devem ser recheados de diálogos e representações. Por isso, é fundamental que a criança surda possa interagir e esteja inserida no universo da língua espaço-visual, que é a sua base para o raciocínio e o fundamento do seu pensamento simbólico, abstrato e representativo.
Para uma educação de crianças surdas de forma lúdica, prazerosa e eficiente ainda temos muito o que fazer. Desde a adequação de materiais pedagógicos e a formação de profissionais para fazerem uso desses materiais, até políticas educacionais e sociais mais efetivas.
Em suas conclusões, Caroliny salienta que traduções e adaptações podem ser importantes, mas a produção de materiais didáticos produzidos a partir da língua, identidade e cultura surda podem contribuir para um avanço real no desenvolvimento da educação de crianças surdas.
Com isso, a pesquisa também revela um campo de trabalho com uma demanda enorme para designers instrucionais e produtores multimídia na elaboração desses recursos. Os educadores certamente agradecem as oportunidades de parceria, pois a acessibilidade dos estudantes surdos não pode ser responsabilidade apenas do professor.
Caroliny Felício Vieira foi estudante do IFSC no curso técnico de Produção de Materiais Didáticos, nos primeiros anos de existência do câmpus Palhoça Bilíngue. Depois fez graduação em Pedagogia e retornou ao IFSC para fazer conosco a Especialização em Educação de Surdos.
Carol faleceu em 2022, vítima de um trágico e inevitável acidente neurológico. Sua história continua inspirando os que tiveram a oportunidade de conhecê-la e sua produção acadêmica é uma referência para quem quiser saber mais sobre a diferença surda e, em especial, os professores e produtores de recursos educacionais merecem conhecer seu trabalho e as ricas sugestões de atividades lúdicas adequadas para esse público. Saudades!